A criação de um novo órgão ambiental em Guaramiranga, no Maciço de Baturité, no Ceará, tem gerado protestos da
população por temor de que ele acabe acelerando a degradação dos recursos naturais e o aumento da especulação imobiliária na região.O projeto de lei (PL) municipal nº 05/2025, que cria a Autarquia do Meio Ambiente de Guaramiranga, foi enviado pela prefeita Ynara Mota (Republicanos) à Câmara Municipal da cidade, que aprovou a proposta, no último dia 20 de março, em meio a tumulto entre parlamentares favoráveis e contrários à medida.
A lei ainda precisa de sanção da prefeita para entrar em vigor. Além disso, as atribuições, o funcionamento da estrutura administrativa e outros assuntos ligados ao órgão “serão definidos em regulamento”, como aponta o PL. Enquanto isso, continuarão sendo utilizados “as normas e padrões estabelecidos pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema)”.
O texto do projeto de lei delimita como uma das competências da autarquia “administrar e executar o licenciamento ambiental de obras e atividades consideradas potencial ou efetivamente poluidoras e degradadoras do meio ambiente municipal, (...) executando atividades de fiscalização e controle ambiental”.
Atualmente, essas atividades competem à Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e à Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Ceará (Sema). Para solicitar autorizações e licenciamentos em Guaramiranga, portanto, pessoas físicas ou jurídicas devem acionar os órgãos estaduais.
A criação de uma autarquia própria, então, preocupa a população, que teme que a concessão de licenças e permissões para construções na serra seja flexibilizada e acelerada.

A Sema explica, porém, que “enquanto qualquer município não alcance os critérios estabelecidos, as ações administrativas de licenciamento e autorização ambiental continuarão sendo realizadas pela Semace e pela Sema, quando se tratar especialmente de autorizações/anuências em Unidades de Conservação Estaduais (UCs), como é o caso de todo o Maciço de Baturité”.
A resolução nº 07, publicada pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema) em 2019, determina que “para exercer as atribuições concernentes ao licenciamento das intervenções de impacto local, o município deve possuir sistema de gestão ambiental”.
O sistema, por sua vez, deve ter, no mínimo:
- Órgão ambiental capacitado;
- Política Municipal de Meio Ambiente prevista em legislação específica;
- Conselho Municipal de Meio Ambiente em atuação, com representação da sociedade civil organizada paritária à do Poder Público;
- Legislação que discipline o licenciamento ambiental municipal;
- Equipe multidisciplinar de nível superior para analisar o licenciamento ambiental;
- Equipe de fiscalização e de licenciamento formada por servidores públicos efetivos de nível superior.
Os procedimentos de fiscalização não são detalhados no projeto de lei de criação da Autarquia do Meio Ambiente de Guaramiranga. O texto delimita apenas que a fiscalização será feita “em articulação com os demais órgãos do Município, do Estado e da União, na forma estabelecida no PDP - Plano Diretor Participativo, na LOM (Lei Orgânica do Município)”.
O que a autarquia deverá fazer
O projeto de lei que cria a autarquia municipal prevê que “todo licenciamento ambiental a ser implantado em Guaramiranga deverá deixar 5% de área preservada ou área verde”, “sem prejuízo às demais legislações vigentes”, e devem ser realizadas “medidas compensatórias ambientais, entre 2% e 4%, conforme o grau de impacto”.
A diretriz vai de encontro à lei estadual nº 13.688, de 2005, que versa sobre construções em áreas urbanas e rurais na APA da Serra de Baturité, onde fica Guaramiranga. A lei determina os seguintes limites para as edificações:
- Serviços de hospedagem, hotelaria e lazer: devem ocupar no máximo 5% da área total do lote, sendo os 95% restantes voltados à preservação da cobertura vegetal ou reflorestamento;
- Condomínios de outras naturezas: devem ocupar no máximo 1% da área total do lote, sendo os 99% restantes destinados à preservação permanente.
Além das licenças para construções na APA, está entre as permissões que a autarquia poderá emitir a Autorização de Supressão de Vegetação (ASV), que “permite a supressão de vegetação nativa de determinada área para fins de uso alternativo do solo, visando a instalação de empreendimentos de utilidade pública ou interesse social”.
Segundo o PL, o objetivo da criação da autarquia é “assegurar a preservação ambiental, a proteção da saúde pública, a revitalização de áreas degradadas e o desenvolvimento sustentável do município de Guaramiranga”.
Por que a população é contra

O advogado Jairo Castelo Branco, mestre em políticas públicas e ativista da pauta ambiental na cidade, aponta que a criação do órgão tem respaldo legal, mas denuncia que “a atual prefeita de Guaramiranga tem ligações umbilicais com o setor imobiliário, que hoje já lucra com a devastação das terras na cidade”.
Jairo pontua também que o texto do projeto de lei descumpre resoluções do Coema em pelo menos três pontos:
- Os municípios podem atuar a restringir o desmatamento, e não a flexibilizar;
- Os órgãos precisam ter servidores concursados, e o PL prevê a formação da autarquia por cargos comissionados;
- Deve haver uma estrutura mínima, com equipe técnica multiprofissional, incluindo engenheiros ambientais, analistas e advogados, que não estão especificados no PL que cria o órgão.
O PL prevê que a Autarquia do Meio Ambiente será formada por 17 cargos comissionados, ou seja, indicados pela gestão municipal:
- Um superintendente;
- Seis coordenadores e assessores jurídicos;
- Seis técnicos;
- Quatro auxiliares administrativos.
As coordenadorias serão de proteção animal, de licenciamento ambiental, de fiscalização e monitoramento ambiental, de educação ambiental e de gestão financeira e administrativa. Já os técnicos serão de licenciamento, de controle e fiscalização, e auxiliar administrativo. Os salários variam de R$ 1.518 a R$ 4.300, sendo este último o da superintendência.
De acordo com a resolução nº 07/2019 do Coema, um dos critérios para que um município tenha competência sobre os licenciamentos é a existência de uma “equipe formada por servidores públicos efetivos de nível superior”. A ideia é que tenham autonomia, estabilidade e segurança para atuar.
Outro ponto levantado pelo advogado e ativista é que “a autarquia terá o direito de determinar o que é impacto local e o que é regional, já que só pode liberar licenças de impacto local”.
“Mas o Maciço tem mata contínua. É praticamente impossível dizer que a liberação de empreendimentos em Guaramiranga não causa impacto regional”, finaliza.
Além disso, entre as competências da autarquia listadas pelo projeto de lei que a cria está “expedir anuência ambiental para as atividades licenciáveis de impacto local e regional”. Este último não é permitido a um órgão municipal.
Por definição legal, uma intervenção de impacto ambiental local é quando o empreendimento, obra ou atividade “não tem efeitos capazes de ultrapassar os limites territoriais de um município”, como define o Coema.
“População não foi ouvida”
A artesã Monara Uchôa, nativa de Guaramiranga, ativista ambiental e integrante do movimento contra a autarquia, reclama que a população “não teve voz” nas discussões sobre o PL. Segundo ela, foram feitas duas audiências públicas: na primeira, outra pauta foi colocada e eclipsou a ambiental; na segunda, “não foi dado espaço de fala”.
A principal preocupação dos moradores, segundo Monara, é sobre os possíveis danos à fauna, à flora e às famílias nativas da região, caso grandes construções sejam autorizadas – já que, ela opina, “a APA de Baturité está muito visada”.
“Isso está nos colocando em risco de uma série de problemas que virão futuramente: deslizamento de barreiras, que já acontece muito; aquecimento da região, extinção de animais e eles ficarem sem habitat”, lista.
A artesã relata que a entrada de animais nas casas “em busca de comida”, sobretudo em regiões com construções muito próximas às matas, já tem sido frequente. “É uma situação muito triste, a gente vê a nossa mata sendo destruída para benefício próprio dos grandes. Vai além do financeiro: são as nossas raízes, nossa cultura, nossa terra”, frisa.
“Diminuindo a cobertura florestal, você vai decisivamente fazer com que falte água pra populações locais e aumentar o risco de desastres ambientais na região”, reforça o advogado Jairo Castelo Branco.
Guaramiranga tem a segunda menor população do Ceará, mas foi a quarta cidade cearense com maior aumento populacional entre os Censos do IBGE de 2010 e 2022: naquele ano, havia 4.164 habitantes; já no último censo, foram mapeados 5.654, um aumento de quase 36%.
Impactos da ocupação de áreas preservadas

A redução acelerada de áreas verdes para construção de empreendimentos, sejam quais forem os tipos, é especialmente preocupante na Serra do Maciço de Baturité, já que a região “resguarda os últimos mostruários de Mata Atlântica do semiárido e do Ceará”. É o que avalia Flávio Nascimento, geógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O pesquisador frisa que a região é “super diferenciada”, historicamente marcada pelas temperaturas mais amenas, pela vasta produção de água e pela grande biodiversidade – características que ficam ameaçadas pela redução da cobertura vegetal original e pelo aumento da população.
“Uma vez avançando as construções com desmatamento da vegetação original, há perda de habitat da fauna, compactação dos solos e profunda perda da biodiversidade, com impactos na possibilidade de infiltração e escoamento natural das águas e reabastecimento de bacias hidrográficas importantes do interior e da Região Metropolitana”, frisa.

A preocupação com o abastecimento de água, então, uma das principais mencionadas pelos moradores de Guaramiranga, tem fundamento. “Não só a retirada da vegetação, mas a própria compactação do solo, com o aumento de asfaltos, construções indevidas, contribuem para a redução da condição de produção hídrica”, analisa Flávio.
Outro impacto possível é nas condições climáticas da região. “Você terá um aumento da temperatura da superfície, impactando no calor e na sensação térmica, o que vai também de confronto com as condições de amenidades climáticas da região do Maciço de Baturité, muito procurada por essa característica”, reforça o professor.
Junto a isso, interferências profundas na paisagem aumentam os riscos de desastres que já são presentes na região, como:
- Deslizamentos de encostas;
- Movimentos de solo;
- Queda de blocos.
Além dos possíveis danos ambientais, o pesquisador observa os impactos culturais, sociais e até econômicos da expansão de construções na região.
“(Com aumento de construções), você desconfigura as condições paisagísticas, logo provoca um impacto na condição estética, que também serve como objeto para o desenvolvimento do turismo na região, que é diferente no Estado do Ceará, que não é o turismo de sol e mar”, detalha.
Assim, “quanto mais você aumenta a população, principalmente a flutuante, que é a que você recebe nos momentos de festividade, há tem uma pressão descomunal sobre a necessidade de recursos hídricos, de disposição adequada de resíduos sólidos, e pode consequentemente provocar uma pressão nas condições de saneamento básico”, pontua.
O pesquisador, então, resume: “o regramento do uso e ocupação do solo no Maciço de Baturité exige mais especificidades, mais controles do que outras áreas no estado do Ceará”.
O que diz o Poder Público
O Diário do Nordeste contatou o Gabinete da Prefeitura de Guaramiranga por e-mail, na tarde de quinta-feira (27), para obter um posicionamento da gestão em relação às contestações dos moradores. A gestão também foi procurada na sexta (28) por telefone e por redes sociais. Um advogado do Executivo Municipal entrou em contato com a reportagem no sábado, no entanto, não houve envio de nenhuma resposta até a publicação desta reportagem.
Também contatamos o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para saber se o órgão está ciente da situação, que atuação pode ou não ter nesse cenário e de que forma pode garantir a proteção da APA da Serra de Baturité, caso haja irregularidades na atuação desse órgão municipal. Tampouco houve retorno.
Já a Sema informou, em nota, que “a descentralização da gestão ambiental, seja para licenciamentos, monitoramento e fiscalização de atividades de impacto local, é de interesse e de cooperação comum entre os entes federal, estadual e municipal, desde que se cumpra os critérios legais e obrigatórios”.

A Pasta reforçou que, “enquanto qualquer município não alcance os critérios estabelecidos”, essa gestão ambiental continuará cabendo apenas aos órgãos estaduais.
Por fim, a secretaria destaca que “a aprovação de quaisquer autarquias em âmbito ainda de Câmaras Municipais não respalda ou valida o cumprimento e atendimento destas condições, as quais devem ser apresentadas obrigatoriamente ao Coema”. Por tanto, caso inadequada, a autarquia não exercerá os poderes pretendidos.
Por outro lado, caso a lei que cria o órgão municipal esteja adequada a todos os critérios, o município deve comunicar a sanção oficialmente ao Coema, que encaminhará cópia do comunicado à Sema e à Semace, para integrar o município ao Sistema Estadual de Meio Ambiente.DIÁRIO DO NORDESTE
RP: O SEU ENCONTRO COM O JORNALISMO SÉRIO E INDEPENDENTE É NA RÁDIO PALHANO WEB,COM O RADIALISTA ROGÉRIO PALHANO,A PARTIR DAS 12;00 HORAS, DE SEGUNDA A SEXTA-FEIRA
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